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Crise climática ameaça tradição milenar da cerâmica Waurá


Mudança nas chuvas causa escassez de matérias-primas essenciais

Conta a tradição do povo Waurá (ou Wauja) que, há muitos anos, apareceu uma grande cobra-canoa. Chamada Kamalu-hái, a entidade transportava artefactos cerâmicos no seu dorso, e foi com ela que os Waurá aprenderam a arte ancestral da cerâmica.

Antes de se despedir dos Waurá, a cobra-canoa deixou-lhes os seus dejetos: montes de argila depositados nas margens do rio, para que os indígenas pudessem produzir as suas peças. Assim, a cerâmica Waurá passou a ser fabricada, tornando-se um dos elementos identitários deste povo.

Como herança ancestral, transmitida de geração em geração, estas peças são feitas artesanalmente, podendo variar de pequenos potes a grandes panelas. Servem para o preparo de alimentos e para armazenamento, mas também para serem utilizadas em rituais ou como objetos decorativos.

Depois de moldadas à mão, as peças secam ao sol e passam por dezenas de raspagens, até atingirem a espessura desejada. Em seguida, são lixadas e polidas, até que possam ser queimadas ao ar livre. Só então adquirem a sua característica mais reconhecida: a pintura de grafismos, realizada com pigmentos naturais.

Para fabricar esta cerâmica, os Waurá ─ que habitam o Parque Nacional do Xingu, em Mato Grosso ─ recolhem o barro no leito do rio e misturam-no com uma espécie de esponja de água doce ou coral, chamada cauxi. Formado nos troncos e raízes da vegetação, o cauxi é apanhado no fundo dos rios e é essencial para dar consistência ao barro e evitar que as peças rachem.

“Primeiro vamos buscar o barro ao rio ou perto do rio. São os homens que mergulham para o recolher”, explicou Yakuwipu Waurá, liderança indígena, ceramista e professora Waurá, que vive na aldeia Piyulewene, no Parque Nacional do Xingu.

“Apanhamos o barro e também o cauxi. O barro, sozinho, não se aguenta. Se usarmos apenas o barro, vai rachar tudo. E, para não rachar, usamos o cauxi, que fica no pântano do rio ou na margem. O cauxi reproduz-se enquanto o rio está cheio. Fica ali durante quatro ou cinco meses, a crescer. Depois, morre. Morre sozinho”, explicou a ceramista.

Foto facebook: Loja Yanomami: https://www.facebook.com/lojayanomami

Risco

Guardado e transmitido há mais de mil anos, sobretudo pelas mulheres, o conhecimento da fabricação da cerâmica Waurá está agora em risco. As secas prolongadas e as cheias cada vez mais curtas e irregulares têm reduzido drasticamente a disponibilidade de cauxi, elemento essencial para a produção destas cerâmicas.

Além disso, o processo artesanal, que envolve a recolha de barro, a queima com madeira específica (jatobá) e a pintura com grafismos tradicionais, também sofre com os impactos ambientais. Sem estes recursos, está em risco não apenas a produção, mas também a autonomia económica das mulheres e a transmissão cultural às novas gerações.

“Desde 2020, temos percebido que a mudança climática está a afetar [a produção de cauxi]. Como o rio já não sobe durante cinco meses, ficando apenas três meses cheio e depois baixando, não há cauxi suficiente para se reproduzir. Já não cresce mais”, disse Yakuwipu, em entrevista à Agência Brasil.

As dificuldades levaram à interrupção da produção de panelinhas artesanais. Além disso, tornou-se necessário procurar cauxi noutros locais, o que encareceu o trabalho.

“No sítio onde costumávamos recolher [cauxi], agora é que ele começou a recuperar. Mas os cauxis são muito pequenos e insuficientes para cortar, queimar e fazer a mistura [com o barro]”, acrescentou.

Na semana passada, ceramistas do povo Waurá estiveram em São Paulo a participar numa série de encontros, oficinas e rodas de conversa. E aproveitaram para lançar um alerta sobre as mudanças climáticas, que não só intensificam eventos extremos como cheias e secas, mas também afetam a identidade e a tradição de diversos povos.

“Tudo isto é muito preocupante. Preocupa-nos muito o avanço do desmatamento em volta do Xingu. Nunca imaginámos que isso afetaria a produção das panelinhas [cerâmicas Waurá]. Sempre tememos que este conhecimento se pudesse perder com o tempo. Mas nunca pensámos que chegaria o momento de sermos atingidos pelas mudanças climáticas. O povo Waurá vive do que a natureza oferece. Só que estamos a pagar o preço e as consequências do mal que os outros fazem à natureza”, alertou Yakuwipu. “Infelizmente, vocês não cuidam [do meio ambiente]. Só abusam da natureza”, reforçou.

A falta de cauxi afeta diretamente a produção de panelinhas e, consequentemente, a identidade e o rendimento desta população indígena, que comercializa estas cerâmicas.

“Estamos ameaçados, tanto culturalmente como também na nossa renda”, destacou a liderança indígena. “Todas as peças que produzimos estão relacionadas com os materiais à nossa volta, como os animais, as aves e os peixes. Além disso, [as cerâmicas] são pedaços das nossas histórias, são memórias. Através de cada peça, contamos o [nosso] passado e a [nossa] cultura. Cada pintura que fazemos, através dessas linhas, mantém-nos ligados ao passado, ao presente e ao futuro”.

Em entrevista à Agência Brasil, no Espaço Floresta do Centro, do Instituto Socioambiental, em São Paulo, Yakuwipu disse que, além da produção das cerâmicas, as mudanças climáticas também vêm a dificultar a produção de alimentos dos povos indígenas. “Em 2023, não conseguimos plantar mandioca em grande escala. Replantei três vezes, e a mandioca cresceu toda pequena. E não conseguimos plantar milho, perdemos todas as sementes. Também não conseguimos plantar bananas”.

COP 30 em Belém

Para a líder indígena, este cenário reforça a urgência dos debates da Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 30), que terá lugar em Belém, de 10 a 21 de novembro. Para ela, é importante que as autoridades ouçam as vozes indígenas e que os fazendeiros “deixem de desmatar as florestas”.

“Os xinguanos [habitantes do Xingu] precisam ser consultados sobre todas as obras que vão ser construídas em volta do Xingu, porque já temos a experiência da [usina] PCH Paranatinga II, que foi construída sem qualquer estudo. As autoridades disseram que não iria afetar a nossa vida, mas, passados dez anos, foi ela a responsável por secar o Rio Xingu. Para evitar [desastres ambientais], é preciso que as autoridades nos respeitem, porque o rio e a floresta respiram como nós”, destacou Yakuwipu.

Para Karina Araújo, analista de pesquisa social do Programa Xingu do Instituto Socioambiental, é fundamental que os povos indígenas sejam ouvidos sobre os projetos de infraestrutura do país e também sobre medidas que possam impedir o desmatamento e as queimadas na região.

“Acho que essa consulta livre, prévia e informada é uma forma de solução. Se se fizer um empreendimento sem ouvir os povos indígenas, vai afetar não só os povos indígenas, mas todo o entorno e as gerações futuras. Quando ouvimos os povos indígenas, eles já estão a fazer mitigação e adaptação. Sabemos que, no entorno do Parque Indígena do Xingu, há muita produção de soja. É preciso que as autoridades dos países que compram essa soja percebam como também são responsáveis por afetar esse equilíbrio ambiental”, afirmou.

Karina disse ter muita esperança na participação dos povos indígenas na COP 30. “Além de o evento acontecer no Brasil, acontece agora, neste momento político em que temos o Ministério dos Povos Indígenas. Temos organizações indígenas muito fortalecidas por este ministério e também por uma mudança, digamos, no financiamento. Atualmente, há muito mais financiadores ou empresas a financiar diretamente as associações e organizações indígenas. Isso aumenta o protagonismo dos indígenas”, afirmou. “Espero que tanto o governo brasileiro como os governos de outros países se coloquem em escuta [aos apelos indígenas]”.

Este texto foi gentilmente cedido pela Agência Brasil

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