Já chegou a ser proposto como o 5º crime contra a paz, mas ainda não conseguiu impor-se. Portugal chumbou a sua entrada no código penal, mas afinal o que é o ecocídio?
Por Reinaldo Dias
É possível imaginar um rio cristalino que sustenta a vida de uma comunidade inteira ser transformado em uma corrente de resíduos tóxicos, onde milhares de peixes mortos flutuam como um triste lembrete da destruição ambiental. Ou então, florestas milenares, que abrigam incontáveis espécies, sendo dizimadas em questão de dias para abrir espaço a práticas econômicas predatórias. Essas não são cenas de um futuro distante, mas realidades que marcam tragédias ambientais ao redor do mundo. Mas Portugal acabou de votar não
Recuemos ao termo histórico…
O termo “ecocídio” surgiu no início da década de 70, motivado pelas devastadoras consequências ambientais da Guerra do Vietname. Foi nessa época que o biólogo americano Arthur W. Galston, sensibilizado pelos efeitos do uso do desfolhante químico Agente Laranja, cunhou o termo durante a Conferência sobre Guerra e Responsabilidade Nacional, em 1970 (Unuigbe & Benedict, 2020; Mustafayeva & Rahimli, 2024).
Essa substância, pulverizada em grandes quantidades pelas forças armadas dos Estados Unidos entre 1961 e 1971, foi empregada para eliminar a vegetação densa do Vietname, expondo esconderijos inimigos. No entanto, o impacto foi devastador, destruindo ecossistemas inteiros, causando doenças graves, como cancros e defeitos congénitos, afetando várias gerações de vietnamitas e veteranos americanos (Multiterno & Stohrer, 2018).

O conceito de ecocídio ganhou destaque na comunidade internacional quando, em 1972, o primeiro-ministro sueco Olof Palme, no seu discurso de abertura na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, descreveu os atos de devastação ambiental no Vietname como ecocídio. Esse evento marcou um importante momento de denúncia contra a destruição ambiental em contextos de guerra, inserindo o termo nas discussões globais sobre direitos ambientais (Unuigbe & Benedict, 2020; Altares, 2021).
A associação do termo à destruição ambiental deliberada gerou interesse contínuo ao longo das décadas. Inspirado no conceito de genocídio — que significa a destruição intencional de um grupo humano —, ecocídio combina a raiz grega “oikos” (casa ou habitat) e o sufixo latino “cídio” (matar), enfatizando a gravidade de atos que visam ou resultam na destruição de ecossistemas (Altares, 2021).
Durante os anos 1970, as Nações Unidas começaram a discutir regularmente o tema, embora o termo não tenha sido incorporado formalmente ao direito internacional na época (Hillsdon, 2023). Em 1998, a ideia de incluir o ecocídio como um crime internacional no Estatuto de Roma — tratado que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI) — foi debatida, mas não adotada.
A proposta voltou a ganhar força em 2021, quando um painel de especialistas convocados pela organização Stop Ecocide International apresentou uma definição jurídica para o termo, sugerindo sua inclusão como um quinto crime no Estatuto de Roma, ao lado de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão (Koop, 2024; Altares, 2021).
O painel de especialistas internacionais (IEP) divulgou a seguinte definição: “ecocídio significa atos ilegais ou arbitrários cometidos com o conhecimento de que há uma probabilidade substancial de danos graves, generalizados ou de longo prazo ao meio ambiente causados por esses atos” (Stop Ecocide Foundation, 2021).
O movimento atual para reconhecer o ecocídio como crime internacional reflete a urgência de lidar com os impactos crescentes da destruição ambiental, impulsionados por desastres como o acidente nuclear de Chernobyl em 1986 e o rompimento da barragem de Mariana, no Brasil, em 2015, que evidenciaram as consequências devastadoras para ecossistemas e populações humanas (Multiterno & Stohrer, 2018).
Portanto, desde a sua criação que o termo ecocídio evoluiu de uma denúncia moral e política para um conceito jurídico com potencial de responsabilizar internacionalmente os responsáveis por danos ambientais graves e de longo prazo.
Ações globais recentes para criminalizar o ecocídio
Desde a divulgação da definição do IEP em 2021, vários países passaram a implementar legislações relacionadas ao ecocídio.
Em 2021, a França introduziu o delito de “ecocídio” em sua legislação para punir atos graves de poluição ambiental. Essa iniciativa surgiu a partir das recomendações da Convenção de Cidadãos pelo Clima, um grupo de 150 cidadãos franceses que propuseram medidas para combater as mudanças climáticas. O “ecocídio” é classificado como um delito, não como um crime, no sistema jurídico francês.
As penas para quem causar danos graves e intencionais ao meio ambiente podem ir até dez anos de prisão e multas de até 4,5 milhões de euros. Além disso, a legislação prevê um delito de “colocar o meio ambiente em risco”, permitindo que infratores em potencial sejam punidos antes mesmo de cometer atos de poluição ilegal (Code de l’environnement, 2021).
Em 29 de março de 2023, o Parlamento Europeu aprovou a inclusão do ecocídio na legislação europeia, visando combater infrações graves ao meio ambiente, como derramamentos de petróleo, poluição tóxica, destruição da biodiversidade e impactos à saúde humana.
Baseada na definição do IEP, o ecocídio abrange atos que causam danos graves, generalizados e irreversíveis ao meio ambiente.
O texto considera a negligência grave como uma das principais causas desses crimes, incluindo acidentes tecnológicos e atrasos na implementação de normas. A prescrição passa a contar do momento da descoberta da infração, permitindo responsabilização por impactos como doenças desenvolvidas anos após o delito, incluindo cancros ligados ao uso de agrotóxicos. A medida fortalece a proteção ambiental e os direitos humanos. (Daoud & Masmonteil, 2023).
A Bélgica reconheceu o ecocídio como crime na sua legislação em 2024, embora tenha adotado uma definição mais restritiva, que exige danos “graves, generalizados e de longo prazo” simultaneamente, o que aumenta a dificuldade de condenações (Zabuska, 2024).
Na América Latina, países como México, Chile, Equador, Brasil têm implementado legislações relacionadas com o ecocídio (Dasgupta, 2024; Otunge, 2024). A mais recente ocorreu no Perú, onde em 27 de novembro de 2024, a Comissão de Justiça e Direitos Humanos aprovou uma moção para incluir o ecocídio como crime no Código Penal, com base na definição proposta pelo IEP em 2021.
O artigo 305-A prevê a punição para atos conscientes que causem danos graves, amplos ou irreversíveis ao meio ambiente, incluindo a sua qualidade e processos ecológicos. Embora seja um avanço significativo, a proposta ainda necessita de aprovação pelo plenário do Congresso e sanção presidencial para se tornar lei. Essa iniciativa reflete o compromisso do Peru em fortalecer a proteção ambiental e combater crimes ecológicos (Stop Ecocide International, 2024).
A nível internacional, a proposta de incluir o ecocídio no Estatuto de Roma, que rege o TPI, está em discussão. Este exigiria o apoio de dois terços dos 124 estados que ratificaram o tratado, um desafio significativo, especialmente porque grandes emissores de gases de efeito estufa, como China, Índia e Estados Unidos, não ratificaram o Estatuto (Gill & Enahoro, 2024).
A campanha para criminalizar o ecocídio recebeu apoio significativo de figuras públicas e organizações, como o Papa Francisco, que defendeu a criação de uma estrutura jurídica para proteger os ecossistemas (Koop, 2024). Além disso, a ativista Greta Thunberg contribuiu financeiramente para a campanha, ajudando a ampliar o alcance do movimento global (Fleming, 2021).
O reconhecimento do ecocídio como um crime internacional representaria um avanço sem precedentes na responsabilização por danos ambientais, abordando lacunas jurídicas e promovendo uma nova era de proteção ambiental. A definição, desenvolvida pelo IEP, tornou-se a base para movimentos nacionais e internacionais que buscam garantir que a destruição ambiental não fique impune.
A proposta das ilhas do Pacífico ao TPI
As pequenas nações insulares do Pacífico, lideradas por Vanuatu, têm desempenhado um papel central na tentativa de incluir o ecocídio como um crime reconhecido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Este movimento reflete o impacto desproporcional que essas nações enfrentam devido à crise climática e à destruição ambiental, colocando-as na linha de frente das ações globais para proteger o meio ambiente.
Vanuatu enfrenta os impactos devastadores das mudanças climáticas, incluindo o aumento do nível do mar, temperaturas mais altas e eventos climáticos extremos como ciclones e tempestades. Composto por 82 ilhas vulcânicas, muitas a apenas 0,9 metros acima do nível do mar, o arquipélago abriga cerca de 260 mil pessoas e enfrenta desafios significativos devido ao seu isolamento geográfico.
Desde 1993, o nível do mar tem subido 6 milímetros por ano, com projeções de um aumento de até 18 centímetros até 2030. Além disso, as temperaturas podem subir 1°C por ano, agravando os impactos climáticos. Eventos como chuvas extremas, deslizamentos de terra e secas intensificam a vulnerabilidade do país, prejudicando sua economia e os meios de subsistência da população, majoritariamente rural. (Government of Vanuatu. 2020).
Na sua luta para continuar a existir diante do avanço do mar em suas terras, Vanuatu participa ativamente nos fóruns internacionais divulgando a situação das pequenas ilhas do Pacífico diante das mudanças climáticas. Em 2019, por exemplo, Vanuatu solicitou pela primeira vez a inclusão do ecocídio como crime na assembleia anual do TPI. Embora não tenha sido uma proposta formal, desencadeou discussões em torno do ecocídio.
Já em 9 de setembro de 2024, três nações insulares, Vanuatu, Fiji e Samoa apresentaram formalmente uma proposta para alterar o Estatuto de Roma, que rege o TPI, buscando o reconhecimento do ecocídio como um quinto crime internacional, ao lado de genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes de agressão (Mustafayeva & Rahimli, 2024; Gill & Enahoro, 2024). A definição proposta segue o conceito formulado por especialistas em 2021.
As ilhas do Pacífico, incluindo Vanuatu, Fiji e Samoa, enfrentam algumas das consequências mais severas das mudanças climáticas, como o aumento do nível do mar, tempestades mais intensas e perda de ecossistemas marinhos e terrestres. Essa vulnerabilidade explica sua liderança no esforço para criar uma estrutura legal internacional que responsabilize os responsáveis por crimes ambientais.
Embora litígios domésticos sejam limitados devido à localização dos infratores – frequentemente grandes corporações em outros países – a abordagem internacional proposta oferece uma alternativa viável e necessária (Cooper & Tuala-Warren, 2024).
A proposta, caso seja aprovada, abriria caminho para o julgamento de indivíduos, como chefes de Estado ou líderes de corporações poluidoras, por crimes ambientais em larga escala. Além disso, criaria um forte efeito dissuasório contra práticas que levam à destruição ambiental severa (Harvey, 2024).
A iniciativa das ilhas do Pacífico também ganhou um aliado importante na República Democrática do Congo (RDC). Numa declaração histórica na Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade (COP16), em 2024, a RDC tornou-se o primeiro país africano a apoiar formalmente a inclusão do ecocídio no Estatuto de Roma. Esse endosso sublinha a relevância do tema para países do Sul Global, frequentemente mais vulneráveis às consequências da destruição ambiental (Otunge, 2024).
O apoio de países como da RDC demonstra que a ideia de responsabilizar criminalmente aqueles que causam danos ambientais massivos está a ganhar força. Essa tendência reforça o papel das pequenas nações insulares como catalisadoras de mudanças globais, usando sua vulnerabilidade como uma plataforma para liderar o movimento por justiça ambiental.
A Importância da Educação Ambiental e da Mobilização Política
A criminalização do ecocídio representa um passo importante, mas insuficiente, para a proteção ambiental. Para prevenir danos deliberados ao meio ambiente, é imprescindível fomentar uma conscientização coletiva por meio da educação ambiental.
Programas educacionais que destacam práticas sustentáveis, o respeito aos ecossistemas e a interdependência entre o ser humano e a natureza são fundamentais para a formação de cidadãos conscientes, capazes de adotar atitudes proativas em relação à conservação ambiental.
Além disso, o fortalecimento da governança ambiental a nível local desempenha um importante papel. Iniciativas comunitárias e políticas municipais podem complementar os esforços internacionais, garantindo que as populações afetadas tenham suas vozes amplificadas e que as políticas atendam às suas necessidades específicas (Ahmed et al., 2024).
O envolvimento direto das comunidades não apenas aumenta a eficácia das ações, mas também promove uma relação mais equilibrada entre as ações locais e as estratégias globais de conservação.
Contudo, a mobilização política permanece como o elemento mais eficaz para garantir tanto a aprovação quanto a implementação efetiva das leis de proteção ambiental. Experiências históricas mostram que a punição dos crimes contra o meio ambiente frequentemente depende da pressão exercida por uma cidadania ativa e engajada.
Essa participação social contínua é essencial, pois os responsáveis por crimes ambientais frequentemente se opõem ativamente à aplicação das leis, utilizando sua influência econômica e política para enfraquecê-las.
Portanto, a luta pela proteção ambiental não termina com a aprovação de uma lei. É necessário manter um movimento contínuo, que não apenas pressione pela aplicação rigorosa da legislação, mas também exija melhorias constantes na governança ambiental.
Nesse sentido, a mobilização popular e a educação ambiental não são apenas estratégias complementares, mas pilares essenciais para atingir um desenvolvimento sustentável que equilibre a proteção ambiental, a justiça social e o crescimento econômico, garantindo a preservação dos recursos naturais.
E Portugal?
.As propostas de introdução do crime de ecocídio no Código Penal foram chumbadas na semana passada no parlamento, com os votos dos partidos da direita e do PCP, que consideraram que os crimes ambientais já estão previstos.
.O projeto de lei do PAN que prevê o crime de ecocídio foi chumbado pelo PSD, Chega, IL, CDS e PCP, enquanto a proposta do Livre teve o chumbo adicional do PS.
.No plenário foi também debatido o projeto de lei do BE que reconhece o estatuto de refugiado climático, tendo sido chumbado pelo PSD, PS, Chega, IL e abstenção do PCP.
.Já os projetos de lei para criar o estatuto de refugiado climático do PAN, para estabelecer o regime jurídico da mobilidade ambiental (PS) e de conceder proteção subsidiária a migrantes sujeitos a eventos climáticos extremos (Livre) não foram votados e baixaram à comissão parlamentar para um debate na especialidade.
.Os projetos que previam a criação do crime de ecocídio no Código Penal previam penas que os deputados do Chega, CDS e do PSD consideraram desproporcionais, enquanto o PS recordou que a figura do estatuto de refugiado climático já está contemplada na lei de bases do clima.
.No debate, a deputada do PAN, Inês Sousa Real, considerou que se assiste “à destruição impune dos ecossistemas sem exigir as devidas responsabilidades por quem toma as decisões”, com “crimes ambientais que afetam a saúde, a economia e a nossa própria sobrevivência”.
.Já Fabian Figueiredo (BE), outro dos partidos com uma proposta de criação do estatuto de refugiado climático, criticou o “modelo económico gerador de desigualdade” e pediu uma “organização social e territorial que proteja as pessoas das cheias, dos incêndios ou da erosão”.
.Isabel Mendes Lopes, líder da bancada do Livre que propôs um regime jurídico da mobilidade ambiental e defendeu a criação do crime de ecocídio, porque as propostas asseguram “recomendações de iniciativas multilaterais” de que Portugal faz parte, considerando que o “impacto das catástrofes ambientais nas pessoas tem de ser uma preocupação transversal das políticas públicas, dentro e fora de portas”.
.Por seu turno, Miguel Costa Matos, do PS, partido que propõe a “proteção subsidiária a migrantes sujeitos a eventos climáticos extremos”, considerou que é necessário “diferenciar quem é imigrante por motivos económicos e sociais, que deve estar sujeito a um estatuto, mesmo que essa migração seja agravada pelas alterações climáticas” de “quem procura refúgio porque foi afetado por um fenómeno climático extremo”.
LUSA
In EcoDebate.