Num recanto remoto do Pantanal brasileiro, há um local tão repleto de jaguares que é comum encontrar pegadas frescas sempre que alguém desembarca de um barco. Câmaras de vídeo instaladas por investigadores chegaram a registar um jaguar apenas sete minutos após terem sido montadas.
Este fenómeno, que parece saído de um documentário, foi agora descrito num novo estudo que revela algo surpreendente: após os incêndios devastadores de 2020, que consumiram mais de 11 milhões de hectares, ainda mais jaguares migraram para esta área protegida do Pantanal, que já tinha a maior densidade conhecida destes grandes felinos no mundo.
Um refúgio inesperado num cenário de destruição
O estudo, conduzido por Charlotte Eriksson, investigadora pós-doutorada na Universidade Estatal do Oregon, e publicado na revista Global Change Biology, mostra que esta área natural protegida — com cerca de 14.850 hectares — pode estar a funcionar como um verdadeiro refúgio climático. Este conceito designa locais capazes de oferecer abrigo a espécies face a eventos extremos como secas severas ou incêndios de grande escala.

Situada na parte norte do Pantanal — a maior zona húmida de água doce do planeta — esta zona é de acesso extremamente limitado: só se chega de barco, não existem estradas, trilhos ou povoações nas redondezas, e a presença humana é praticamente nula. A densidade de insectos é tão elevada que os investigadores cobrem-se dos pés à cabeça para evitar picadas constantes.
Jaguares com hábitos únicos
Os jaguares que habitam esta região têm características únicas. Alimentam-se sobretudo de presas aquáticas, como peixes e jacarés caimão, e são também mais sociáveis do que o habitual, tolerando melhor a presença de outros membros da espécie — um comportamento raro entre grandes carnívoros solitários.
Desde 2014, uma equipa de cientistas brasileiros e norte-americanos tem monitorizado estes animais através de câmaras automáticas e da recolha de mais de 170 amostras de fezes para análise da sua dieta. Charlotte Eriksson, envolvida no projeto desde 2017, visitou a zona em 2018 e 2021, e descreveu a presença dos jaguares como absolutamente evidente, referindo que são o mamífero mais frequentemente detetado pelas câmaras — um fenómeno bastante invulgar para um predador de topo.

Impacto dos incêndios e da seca: menos devastador do que se temia
Em 2020, os incêndios alimentados pela seca extrema e por ações humanas destruíram metade da área de estudo e causaram a morte estimada de 17 milhões de vertebrados. Apesar disso, os jaguares residentes sobreviveram e mantiveram os seus territórios. Inicialmente, registou-se uma quebra na atividade destes animais, mas, num espaço de um ano, observou-se não só a sua recuperação, como também um aumento populacional e o nascimento de crias. A chegada de numerosos jaguares de outras zonas reforça a ideia de que esta região funcionou como um refúgio natural durante e após a crise ambiental.
Mais espécies, mas sem mudanças no menu dos jaguares
A diversidade e abundância de outros mamíferos também aumentou ao longo do tempo. Curiosamente, esta tendência teve início antes dos incêndios, em 2018, sugerindo que a seca prolongada, e não o fogo, foi o principal motor destas mudanças. Não se verificaram diferenças significativas entre zonas queimadas e não queimadas no que diz respeito à presença de outras espécies.
Mesmo com um aumento das presas terrestres, os jaguares mantiveram a sua preferência por presas aquáticas, especialmente peixes e jacarés. Esta fidelidade alimentar pode ter reduzido a pressão sobre os outros mamíferos, contribuindo para a harmonia ecológica da região.

Preservar antes que seja tarde demais
Os investigadores alertam que estes resultados não devem ser generalizados a outras partes do Pantanal ou da América do Sul, dado o carácter único desta área em termos de proteção legal e isolamento. No entanto, o estudo realça a importância de manter refúgios naturais bem conservados e de adotar estratégias proativas de gestão do fogo, especialmente perante o aumento de fenómenos climáticos extremos.
Este trecho do Pantanal revela-se, assim, não apenas como uma maravilha natural, mas como um laboratório vivo de resiliência ecológica — e um lembrete poderoso da importância da conservação bem-feita num planeta em mudança.


