Há 35 anos que anda no mar. Pescador de peixe e de lixo. Tudo o que encontra traz para terra, desde portas de frigoríficos a trotinetes. Quanto ao peixe, quando não está ainda com o tamanho certo devolve-o ao mar
Levanta-se com as galinhas, ou melhor com as gaivotas. Agradece todos os dias por o seu escritório ter a baía de Cascais como moldura. “Costumo dizer que ver o nascer do sol abraçado ao mar pela manhã é um privilégio para poucos”. Carlos Ambrósio fez uma pausa na investigação criminal para ser pescador. Já passaram 10 anos da outra vida onde encarnou uma personagem como na série do Miami Vice, mas a paixão pelo mar falou mais alto. Na brincadeira diz que deixou de prender pessoas para apanhar peixes e lixo. Tem barco há mais de 35 anos. “Já ia para o mar. Fazia pesca lúdica. Como pescador não estou preso a nada. Estou na natureza”, confessa, enquanto estica o braço com uma sardinha fresca para a sua amiga gaivota, a quem carinhosamente deu o nome de perna de pau, por só ter uma perna. É um pequeno mimo para uma das suas companheiras da faina matinal.

Todas as manhãs vai para o mar e anda por lá entre seis a oito horas. Vê as beachcam e o windguru para estudar o vento. Se estiver de feição iça a âncora. Trabalha a duas milhas da costa, entre São Julião da Barra e o Cabo da Roca. Tem três barcos de fibra que medem entre sete e oito metros e faz pesca seletiva, sustentável e consciente. “Quando os peixes não têm tamanho devolvo-os ao mar. Conheço-os todos. A nossa costa é rica. Tem cação, polvo, robalos, douradas, corvinas, linguados e santolas e quando menciona as santolas, diz preocupado que tem apanhado muitas com toalhetes colados à carapaça e aos olhos. “Muitas ficam com os olhinhos tapados, ficam cegas e acabam por morrer”, lamenta, mostrando um vídeo a provar o que diz.
Carlos Ambrósio é também pescador de lixo marinho há mais de 35 anos. Sempre que vai para o mar recolhe tudo o que encontra. Ainda não se falava de sustentabilidade e já trazia o lixo que via a boiar ou que ficava preso no fundo do oceano”. “O que agora apanho é diferente. Antigamente apareciam muitos sacos de plástico, balões, palhinhas… agora a maior praga são os toalhetes. Ninguém fala disto, mas é inacreditável a quantidade que recolho diariamente”.
No seu barco já trouxe para terra portas de frigoríficos, trotinetes, bicicletas, pacotes de plástico do sal de cozinha, boias de flamingos que devem ter “fugido” da praia, muitos sacos dos dejetos de animais e algumas redes e restos de peças que por vezes devem cair acidentalmente dos barcos. Explica ainda que também vê muitos gargalos de garrafas com as tampas de plástico porque o resto da embalagem desaparece. “Recolho mais ou menos 10 a 15 kg por dia”, contabiliza. Quando chega a terra coloca o balde de “pesca do lixo” nos contentores adequados. O pescador alerta: “muitas vezes as pessoas esquecem-se que tudo vai parar ao mar”.

E conta que os seus achados estão para sempre eternizados numa obra de arte do Bordalo II feita com lixo marinho. “Algum foi recolhido por mim. Está exposta no jardim do Museu do Mar, em Cascais”, indica, dizendo ainda que atualmente há já vários pescadores a seguirem-lhe os passos. “Estão mais sensíveis, além de recolherem o lixo que produzem ainda trazem para terra o que vão encontrando”. Porém, a sua veia de investigador continua a circular e na amanha do peixe vê ao pormenor o que estes andam a comer. “Nunca apanhei plástico dentro das suas vísceras. Só restos de outros peixes, pelo menos o cação e o safio, que são peixes predadores, têm estado limpos”. As corvinas e os robalos não afiança porque ainda não investigou o “caso”.
O pescador fala ainda na invasão da Corvinata Real, que há dez anos era em muito menor número. “É um grande predador dos nossos peixes. Come sardinha, pescada, enfim, come tudo o que apanha! Também se vende, mas tem um menor valor comercial por ser mais mole”, explica, acreditando que esta chegou às nossas águas vinda dentro dos navios oriundos de outros locais. “São espécies que apanham boleia, quando os barcos se enchem de água para navegar com mais segurança e quando chegam aos portos e esvaziam os porões, tudo o que entrou sai para as águas onde os navios atracam. Algumas espécies morrem, outras sobrevivem, caso desta e com o tempo acabam por se tornar dominantes”.

Foto de vídeo dos toalhetes presos nas santolas
Ser pescador não é para qualquer um. A nossa costa não é pera doce e Carlos Ambrósio admite já ter apanhado uns sustos valentes, por isso no inverno, de setembro a abril, vai sempre acompanhado no barco uma vez que o mar está mais revolto, mas “também é quando se apanha mais peixe”, explica. No entanto, não é fácil contratar marinheiros. “Portugueses há poucos e os que conseguimos são de outras nacionalidades que têm cédula marítima, mas que a Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos não reconhece, por isso, não podem trabalhar. Podem ir no barco, mas não como pescadores. “O trabalho não é seguro porque se ganha às marés. Sempre foi assim. Se apanhar muito peixe ganha-se bem. Se apanhar menos, ganhasse menos”.
Carlos Ambrósio vende o peixe todo em lota. Conheço todos os peixes vendidos lá. Sei onde foram apanhados e por quem”, diz, orgulhoso. Se são do Zé Manel de Sesimbra, ou do Cruz Sagrado, por exemplo” e diz que muitas vezes acaba por comprar — porque os preços praticados são via leilão, peixes dos outros pescadores que vende na sua peixaria, a que deu o nome de Do Mar Para Casa, em Cascais. “O peixe selvagem tem muito valor. Na minha peixaria só vendo peixe do mar, apesar de o preço ser muito mais elevado. No entanto, conta que o que é vendido na lota nem chega para abastecer os restaurantes, isto porque muito peixe vai logo para o estrangeiro”. Já não vive sem o mar. Gosta de ver o nascer e o pôr do sol. Adora os encontros com tartarugas, golfinhos e tubarões-martelo. Se voltará a ser polícia, não sabe. A vida é como as ondas, vai e vem e como diz o ditado: há mais marés do que marinheiros!
