Durante décadas, Homo habilis — uma das primeiras espécies do género humano — foi visto como o protagonista da chamada “revolução” que mudou para sempre a relação entre hominídeos e predadores. Teria sido este pequeno hominídeo, há cerca de 2 milhões de anos, o autor das primeiras ferramentas de pedra, um pioneiro na exploração de carne e, sobretudo, a espécie que começou a inverter a balança de poder face aos grandes carnívoros africanos?
Um estudo publicado na revista Annals of the New York Academy of Sciences vem questionar este retrato heróico. Recorrendo a ferramentas de inteligência artificial (IA), uma equipa internacional de investigadores demonstrou que fósseis de Homo habilis encontrados em Olduvai (Tanzânia) apresentam marcas claras de terem sido consumidos por leopardos.
De predador a presa
Os fósseis em causa — o holótipo OH 7, pertencente a um jovem, e o espécime OH 65, de um adulto — exibem marcas de dentes compatíveis com mordidas de felinos. Usando algoritmos de visão computacional (modelos como ResNet-50, DenseNet-201 e VGG-19), os investigadores conseguiram comparar estas marcas com uma base de dados experimental de ossos roídos por diferentes carnívoros. O resultado foi inequívoco: os padrões coincidem com os de leopardos.
“Isto mostra que, longe de dominar o ambiente, o Homo habilis ainda ocupava uma posição frágil na cadeia trófica”, explicam os autores. Ou seja, mais do que caçadores ousados, estes hominídeos eram, pelo menos em parte, presas.

Crédito: Annals of the New York Academy of Sciences (2025). DOI: 10.1111/nyas.15321
Ferramentas de pedra sob suspeita
O estudo não se limita a identificar predadores. Abre também uma discussão sobre o papel do Homo habilis na chamada cultura Olduvai — as primeiras indústrias líticas, tradicionalmente atribuídas a esta espécie.
Nos últimos anos, novas descobertas revelaram a presença de Homo erectus em depósitos datados de 2 milhões de anos, levantando dúvidas sobre quem realmente fabricava as primeiras ferramentas de pedra. Além disso, análises recentes mostram que a anatomia do Homo habilis era mais primitiva do que se supunha, sugerindo limitações para algumas das atividades associadas ao fabrico e uso de instrumentos.
IA a serviço da arqueologia
O uso de inteligência artificial neste estudo é pioneiro na paleoantropologia. Graças a técnicas de aprendizagem profunda, os investigadores conseguiram distinguir marcas deixadas por diferentes carnívoros com níveis de precisão próximos dos 90%.
Esta abordagem permite ultrapassar décadas de debates baseados apenas em observação visual, frequentemente subjetiva. Agora, com dados mais robustos, é possível reconstruir de forma mais fiável as interações entre humanos primitivos e predadores.
Um lugar mais modesto na evolução humana
As conclusões do estudo obrigam a repensar a narrativa clássica da evolução humana. Se o Homo habilis era ainda presa de leopardos, o “grande salto” que inverteu a relação entre hominídeos e carnívoros poderá ter ocorrido mais tarde, possivelmente com Homo erectus, espécie mais adaptada a um estilo de vida terrestre e à caça organizada.
“O nosso estudo mostra que o Homo habilis não foi o herói que durante tanto tempo imaginámos, mas sim uma espécie vulnerável, que teve de sobreviver sob constante ameaça de predadores”, concluem os autores.
Este texto foi escrito partindo da análise deste estudo.

Exemplos de cavidades dentárias registradas na amostra experimental do leopardo (A–F) e nas duas cavidades dentárias documentadas na mandíbula OH 7 (G, H). Crédito: Annals of the New York Academy of Sciences (2025). DOI: 10.1111/nyas.15321