Os impactos mais visíveis da emergência climática, isto é, os picos de calor, furacões, secas, inundações, quebras de culturas, entre outros estão a exarcebar a insegurança alimentar nas “populações vulneráveis”, vítimas de “situações complexas e de conflito e violência”, o que leva muitas a mudar de local à procura de uma vida melhor
Por Luís Marques, em Ecodebate
No relatório anual de 2023, The State of the Global Climate 2023, da Organização Meteorológica Mundial (OMM) há uma área dedicada aos “Impactos socioeconómicos”, onde se foca no aumento da insegurança alimentar e dos refugiados climáticos: “A segurança alimentar, os deslocamentos populacionais e os impactos nas populações vulneráveis continuam a ser uma preocupação crescente em 2023, com os perigos meteorológicos e climáticos exacerbando a situação em muitas partes do mundo.
As condições meteorológicas e climáticas extremas continuaram a desencadear novos e prolongados deslocamentos em 2023 e aumentaram a vulnerabilidade de muitos que já haviam sido desenraizados por situações complexas e multicausais de conflito e violência. (…) Os eventos meteorológicos e climáticos extremos interagem e, em alguns casos, desencadeiam ou agravam situações relativas à segurança hídrica e alimentar, à mobilidade populacional e à degradação ambiental” explica Luís Marques, Professor Reformado do Departamento de História Do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, num artigo que escreveu para o site Ecodebate.
O relatório aborda aqui um dos efeitos mais imediatamente trágicos do aquecimento global. É importante sublinhar, desde logo, a advertência dos seus autores: os impactos mais visíveis da emergência climática, isto é, os picos de calor, furacões, secas, inundações, quebras de culturas, entre outros estão apenas “exacerbando” a insegurança alimentar nas “populações vulneráveis”, vítimas de “situações complexas e multicausais de conflito e violência”. Por enquanto, apenas “em alguns casos”, esses impactos climáticos “desencadeiam” tais crises.
O agravamento da insegurança alimentar e dos contingentes de refugiados deve-se, de fato, à sinergia entre fatores climáticos, ambientais em geral, econômicos, políticos e ideológicos. Mas o clima tem se mostrado um fator cada vez mais relevante nesse contexto socioambiental. O Paquistão, que tem registrado temperaturas acima de 45.oC (54 oC em Turbat em 2017; 52 oC em Jacobabad em 2022), sofreu em 2022 inundações que submergiram cerca de um terço de sua área total, impondo deslocamentos de cerca de 50 milhões de pessoas e a perda de 18 mil km2 de suas terras agricultáveis. É difícil imaginar que as próximas crises meteorológicas e climáticas consintam a este povo o tempo necessário para se recuperar da catástrofe de 2022.
Como afirma o relatório da OMM: “No Paquistão, as inundações das monções de 2022, que desencadearam a maior catástrofe de deslocação numa década, continuaram a ter impactos duradouros em 2023. As comunidades deslocadas ainda se estavam a recuperar quando fortes chuvas atingiram alguns distritos em junho de 2023, causando doenças transmitidas pela água e por outros vetores”.
Em setembro de 2023, a tempestade Daniel inundou quase 3 mil hectares das principais terras agrícolas da parte oriental da Líbia. Além disso, essas tempestades provocaram o colapso de uma barragem, afetando o sistema de irrigação, danificando estradas e o sistema de armazenamento de cereais. Tem-se aqui um típico caso em que um evento climático exacerba uma situação criada na esfera política.
Aumento da insegurança alimentar
O aumento recente da insegurança alimentar demonstra-se de modo particularmente cruel no seu aspeto mais extremo que é também a mais brutal e primitiva das causas de mortes e sofrimentos: o aumento da fome aguda e das mortes por inanição em escala global desde 2015, após décadas de progressos na diminuição da insegurança alimentar global. Essa sinergia é tanto mais evidente porque, como já dito, a fome resulta da conjugação de vários fatores, entre os quais se contam:
1. O aumento da desigualdade produzido pelo triunfo dos “mercados” sobre o modelo social-democrata herdado da história das conquistas sociais desde o século XIX, triunfo este que é a causa primeira e principal da pobreza extrema;
2. A escassez real de alimentos por quebras de culturas decorrentes da destruição da natureza e da desestabilização do clima. Os casos do Brasil e da Argentina são exemplares, mas 2023 foi um ano de perda de produtividade agrícola em todos os continentes. E 2023 será em breve lembrado com saudades pelos agricultores;
3. A escassez artificial de alimentos, ou seja, a carestia causada pela especulação sobre os preços dos alimentos nos mercados futuros, o grau mais sórdido da patologia financeira que domina hoje a economia globalizada, pois os alimentos tornaram-se soft commodities, isto é, parte integrante do grande cassino a que se reduziu a economia global.
4. A escassez real de alimentos causada pela pandemia e pelas guerras.
Luís Marques refere ser importante determo-nos um momento neste último item, pois os senhores da guerra têm hoje, tal como no passado, usado a fome como uma arma nos genocídios e limpezas étnicas das populações civis. Alex de Waal, diretor da World Peace Foundation, escreveu em 2024 que as grandes fomes estão novamente a crescer, desmentindo os prognósticos otimistas de 2016: “Estava errado. As grandes fomes estão de volta. Subestimei a determinação cruel de alguns senhores da guerra de empregar a morte por inanição (starvation) como uma arma. E superestimei o quanto os maiores doadores humanitários do mundo se importam com alimentar os famintos em zonas de conflito”.
“No mundo todo”, continua Alex Waal, “cerca de dois terços das pessoas reduzidas à fome vivem em zonas de guerra ou de violência, como o Sudão e Gaza, ou estão a tentar fugir delas”. E o mundo dos ricos está cada vez mais indiferente a essa situação. Basta lembrar, sempre segundo Alex de Waal, que há cinco anos, os orçamentos de ajuda emergencial de parte dos países doadores respondiam por 60% dos apelos da ONU. Em 2023, caíram para 35%. Na realidade, os países ricos não são apenas indiferentes, são também, e sobretudo, os grandes responsáveis pela pobreza extrema dos países africanos, através da espoliação dos recursos desses países, de golpes de Estado, da venda de armas aos ditadores, etc. No caso do genocídio em curso dos palestinos em Gaza, os EUA apenas confirmam mais uma vez a sua invariável preferência pela guerra, enquanto as chamadas democracias europeias, pelo seu alinhamento, doravante automático, a Washington, perderam sua identidade histórica, sua prosperidade e, sobretudo, o último resquício de capital moral que ainda lhes restava.
Os dados da FAO para 2021, reportados no relatório da OMM, mostram contingentes maiores da humanidade reduzidos à situação de insegurança alimentar e de fome:
- Cerca de 2,3 mil milhões de pessoas no mundo sofriam de insegurança alimentar moderada ou grave, um aumento de 350 milhões em relação a 2019.
- Quase 924 milhões de pessoas (11,7% da população mundial) enfrentavam insegurança alimentar em níveis agudos, um aumento de 207 milhões em dois anos.
- As mulheres, como sempre, sofrem ainda mais: 31,9% das mulheres no mundo todo sofriam de insegurança alimentar moderada ou grave, em comparação com 27,6% dos homens e essa disparidade aumentou em 2021 em relação ao ano anterior.
- 45 milhões de crianças com menos de cinco anos sofriam de emaciação, a forma mais aguda de subnutrição, que aumenta o risco de morte das crianças em até 12 vezes. Além disso, 149 milhões de crianças com menos de cinco anos de idade apresentavam atrasos no crescimento e desenvolvimento devido a uma falta crônica de nutrientes essenciais nas suas dietas.
Entre 2016 e 2023, o número de pessoas necessitadas de auxílio emergencial para não morrerem de fome aumentou de 130 para 363 milhões, um salto de 180%. Cerca de 90 milhões de pessoas estão agora a sofrer de fome aguda na Etiópia, Somália, Sudão, Sudão do Sul e Iêmen. Como lembra ainda Alex de Waal, “esses países, infelizmente, têm assuas próprias histórias de escassez alimentar aguda, mas o mundo nunca presenciou todos esses países reduzidos à morte por inanição ao mesmo tempo”.
É preciso, enfim, ressaltar que os países ricos estão cada vez mais indiferentes aos seus próprios famintos, pois a fome está doravante aumentando também nesses países, a começar pelo mais rico, os EUA. Segundo o United States Department of Agriculture (USDA), “em 2022, 44,2 milhões de pessoas viviam em agregados familiares vitimados por insegurança alimentar. Essas pessoas constituíam 13,5% da população civil não institucionalizada dos EUA e incluíam 30,8 milhões de adultos e 13,4 milhões de crianças”. O avanço da fome nos EUA é sem precedentes na sua história recente, pois em 2021 o número de pessoas em agregados familiares vitimados por insegurança alimentar era de “apenas” 34 milhões. Houve, portanto, um aumento de mais de 30% na população com insegurança alimentar e um aumento de quase 45% na insegurança alimentar infantil, o pior resultado desde 2014.
Digamos, para concluir, que o relatório da OMM confirma mais uma vez o que ninguém mais ignora ou deveria ignorar: nos últimos dez anos, a economia globalizada tornou o planeta mais inóspito à vida. Por volta de 2030, a ultrapassagem do limite perigoso de um aquecimento médio global de 1,5 oC será irreversível e nos próximos dois decênios, quando o aquecimento tiver atingido ou ultrapassado 2 oC, toda a nossa energia e criatividade se consumirá na tarefa de apenas sobreviver. A civilização termo-fóssil que historicamente nos constituiu, e hoje ainda nos define, precisa ser superada e as duas condições primeiras para superá-la é a exigência incondicional de paz e um renascido entusiasmo pela ideia de que outro mundo é (ainda) possível.
Nota: Leia o artigo original publicado no Ecodebate e assinado por Luís Marques.