Um dos maiores desafios da evolução da vida na Terra foi, sem dúvida, a transição dos animais do meio aquático para o terrestre. Esta mudança radical exigiu profundas transformações fisiológicas — e, como agora se sabe, também genómicas. Um estudo publicado na revista Nature revela, pela primeira vez, uma visão global e temporal das adaptações que permitiram a diversas linhagens animais conquistar o ambiente terrestre ao longo de milhões de anos.
A investigação, liderada por Marta Álvarez-Presas, da Faculdade de Biologia e do Instituto de Investigação da Biodiversidade (IRBio) da Universidade de Barcelona, e por Jordi Paps, da Universidade de Bristol, analisou 154 genomas de 21 filos animais. O objetivo: reconstruir as mudanças genéticas associadas a onze eventos independentes de “terrestrialização”.
Transitar para terra: sempre difícil, mas surpreendentemente repetitivo
Apesar de cada grupo ter evoluído de forma independente, os investigadores descobriram que muitos dos desafios enfrentados eram comuns e exigiram soluções semelhantes. O resultado é um impressionante caso de convergência evolutiva à escala genómica.
“Todas as linhagens terrestres ganharam e perderam genes de forma convergente para lidar com o novo ambiente”, explica Marta Álvarez-Presas. Entre as inovações mais frequentes estão genes associados à osmorregulação, fundamentais para evitar a desidratação, à proteção contra stresse ambiental, ao metabolismo, ao sistema imunitário, à perceção sensorial e à reprodução.
Curiosamente, a perda de genes também desempenhou um papel crucial. Algumas linhagens perderam genes relacionados com a regeneração de tecidos — uma capacidade muito comum em animais aquáticos — sugerindo que essa função se tornou menos essencial em ambiente terrestre.
Inovar para sobreviver
Os animais que se tornaram totalmente terrestres — incluindo vertebrados e certos moluscos como os caracóis — mostram uma forte renovação genómica. Foram identificadas expansões de famílias de genes dedicados ao transporte de iões e alterações no metabolismo para reduzir a perda de água.
“Neste processo, algumas funções emergem repetidamente porque são indispensáveis para a vida fora de água. Mas cada linhagem também segue o seu próprio caminho, moldado pelo passado evolutivo, pelas pressões ambientais e pela ecologia do grupo”, afirma Jordi Paps.
Três grandes ondas na conquista da Terra
Um dos resultados mais marcantes do estudo é a identificação de três grandes vagas de terrestrialização, que coincidem com períodos de profundas alterações ecológicas globais. Isto sugere que momentos de mudança ambiental aceleraram ou possibilitaram a colonização dos ecossistemas terrestres por múltiplos grupos animais.
A convergência observada entre linhagens que divergiram há mais de 500 milhões de anos revela que certas soluções evolutivas são quase inevitáveis perante desafios semelhantes — uma demonstração do equilíbrio entre a previsibilidade e o acaso na história da vida.
Reescrever a história evolutiva
Os autores sublinham que os resultados oferecem uma perspetiva inédita sobre a forma como os animais se adaptaram ao ambiente terrestre ao longo de diferentes eras geológicas. O controlo da água e dos sais — um verdadeiro “gargalo evolutivo” — surge como o principal obstáculo comum a todas as linhagens.
“Era expectável que houvesse adaptações repetidas, mas a escala da renovação genómica e a importância das funções osmorregulatórias foram surpreendentes”, conclui Álvarez-Presas.
Com o avanço dos projetos de sequenciação genómica, os investigadores acreditam que novas espécies e grupos pouco estudados poderão ajudar a refinar ainda mais o retrato da maior mudança ecológica da história animal: a conquista da terra.


