A utilização da Inteligência Artificial (IA) na análise de testemunhos históricos pode pôr em risco a preservação da memória e da complexidade humana dos acontecimentos. O alerta é dado pelo historiador Jan Burzlaff, investigador da Universidade de Cornell (EUA), que acaba de publicar um estudo na revista científica Rethinking History.
Burzlaff, especialista em Alemanha nazi e investigador associado ao Programa de Estudos Judaicos daquela instituição, analisou como o ChatGPT resumiu relatos de sobreviventes do Holocausto gravados em 1995, em La Paz, Cracóvia e Connecticut. A conclusão foi clara: a máquina falhou em captar detalhes íntimos e emocionais que são essenciais para compreender a dimensão da tragédia.
Um dos exemplos citados é o testemunho de Luisa D., que sobreviveu ao Holocausto quando tinha apenas sete anos. No seu relato, descreveu como a mãe, desesperada para manter a filha viva, cortou o próprio dedo para lhe dar gotas de sangue – “o mais ténue traço de humidade” – numa tentativa de a salvar. Este episódio, profundamente humano e devastador, foi completamente omitido pela versão resumida produzida pela IA.
“Esta omissão demonstra porque os historiadores humanos permanecem indispensáveis na era da inteligência artificial. A escrita histórica exige captar o sofrimento humano, algo que os algoritmos não conseguem fazer”, sublinha Burzlaff.
Segundo o académico, sistemas como o ChatGPT “resumem, mas não escutam; reproduzem, mas não interpretam; são exímios na coerência, mas falham na contradição”. Ora, acrescenta, é precisamente nesses elementos – a dor, o silêncio, a fragmentação e a tensão moral – que reside a essência do testemunho histórico.
No artigo, Burzlaff apresenta cinco orientações para professores, investigadores e escritores de história que lidem com temas de trauma, genocídio e injustiça. Entre elas, defende que a escrita histórica não deve imitar os padrões das máquinas, mas preservar a singularidade das experiências humanas e a complexidade ética dos acontecimentos.
Historiadores mais necessários do que nunca
“Se a escrita histórica puder ser feita por uma máquina, então nunca foi suficientemente histórica”, afirma.
O investigador adverte ainda que, se a IA é incapaz de lidar com os testemunhos do Holocausto – “o caso extremo do sofrimento humano na história moderna” – tenderá também a distorcer narrativas mais subtis. Para Burzlaff, o risco é claro: ao tentar suavizar ou clarificar o passado, os algoritmos podem acabar por o reescrever.
Num momento em que estudos apontam para a possibilidade de várias profissões, incluindo a de historiador, serem substituídas por IA, o académico rejeita essa ideia. Pelo contrário, defende que os historiadores são hoje mais necessários do que nunca, para garantir que a memória coletiva não se reduz a padrões estatísticos, mas mantém o peso ético e humano da experiência vivida.
“O problema não é saber se a IA consegue reconhecer significado, mas se nós, enquanto sociedade, continuaremos a fazê-lo”, conclui Burzlaff.


