A recente aprovação pelo Governo de um decreto-lei que permite a reclassificação de solos rústicos, incluindo na Reserva Ecológica Nacional (REN) e na Reserva Agrícola Nacional (RAN), para construção de habitação tem gerado preocupações significativas no campo da geografia e ordenamento do território. José Luís Zêzere, investigador e diretor do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, considera que esta decisão pode abrir uma “caixa de Pandora”, com custos no futuro, apontando 240 mortos por deslizamentos em século e meio
“Portanto, uma de duas, ou estávamos todos parvos antes e andámos a delimitar estas áreas e a sinalizá-las, e a pô-las como áreas ‘non aedificandi’ dentro dos planos diretores municipais, ou então estamos agora a abrir uma porta, uma ‘caixa de Pandora’, que vai ter custos a seguir, porque um dia vai haver problemas nestas áreas”, afirmou à Lusa o docente do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) da Universidade de Lisboa.
O também diretor do Centro de Estudos Geográficos (CEG) contesta a alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), aprovado pelo Governo, que permitirá a reclassificação de solos rústicos em urbanos, para a construção de habitação, incluindo na Reserva Agrícola Nacional (RAN) e na Reserva Ecológica Nacional (REN).
“Os diferentes elementos que constituem a rede ecológica nacional têm uma coisa que se chama usos compatíveis. Há uma matriz de usos compatíveis, que diz [que] há algumas coisas que se podem fazer ali, as áreas de instabilidade de vertentes são daquelas que têm menos usos compatíveis, e bem, porque são áreas perigosas de facto”, salientou José Luís Zêzere.
Trata-se de áreas que são tão perigosas quanto “as zonas inundáveis” e, por princípio, não deve aí haver construção “e ainda menos construção de habitação”, acrescentou.
O investigador apoiou-se no “historial dessas áreas em Portugal continental”, nos últimos 150 anos, para contabilizar que morreram por deslizamentos de terras “240 pessoas”, ficaram “desalojadas mais de 1.600” e foram retiradas “1.000 pessoas nestes sítios”.
“A gente tem problemas aqui quando chove bastante ou quando há sismos mais intensos, [mas] não tem havido muito sismos e tem chovido pouco nos últimos anos”, frisou, recordando que os riscos também ocorrem nas ilhas, como os “processos que mataram mais de 50 pessoas na Madeira, em 2010”, que “não morreram afogadas”, mas “por causa dos deslizamentos”.
O geógrafo recuou ainda ao inverno de 2000/2001, no continente, quando, além da queda da ponte de Entre-os-Rios, “houve sarilhos imensos com deslizamentos de terras, com pessoas a morrer em Santa Marta de Penaguião e ao longo do vale do Douro”, ou ainda mais atrás, em 1997, quando na Ribeira Quente, na ilha de São Miguel, nos Açores, “um movimento único matou mais de 30 pessoas”.
“Isto é um assunto sério, são processos que são sérios, têm muita energia, são capazes de matar pessoas. Nós sabemos o que é que pode acontecer nestas áreas perigosas e, por causa disso, dizemos ‘não construam nestes sítios’”, alertou.
“Os sítios são sinalizados, alguém decide que afinal não é assim, afinal pode-se construir. Quando a vaca tossir, ou seja quando surgir o problema, a boa pergunta para fazer é de quem é que é responsabilidade”, questionou José Luís Zêzere, dando logo de seguida a resposta.
“É da Câmara Municipal? É da Assembleia Municipal? É do Governo? É do Presidente da República, que fez a promulgação da lei? Ou é da chuva e da alteração climática?”, disse.
Quando ocorrer uma tragédia, como a que recentemente atingiu a região espanhola de Valência, o responsável do CEG não duvida que “vai ser numa altura em que está a chover bastante” e que a conversa passará pelos “eventos extremos”, que “estão aí”, mas “a culpa não pode morrer solteira”.
Outras zonas da REN em que se poderá construir será nas áreas de elevado risco de erosão e de recarga de aquíferos, o que implicará o aumento do nível de impermeabilização nas bacias hidrográficas, e apesar de a lei manter que nas zonas ameaçadas por cheias “continua a valer a REN”, a capacidade de escoamento ficará comprometida.
“Ou seja, não se olha para a globalidade do problema, do sistema da bacia hidrográfica, andamos aqui a olhar para subsistemas que não funcionam sozinhos”, frisou.
Para José Luís Zêzere, se a lei for levada à prática “vai deixar lastro para décadas”, pois será muito complicado corrigir a “criação de uma data de urbanizações novas”, principalmente nas áreas metropolitanas, “em cima de terrenos não adequados, seja do ponto de vista da segurança”, seja do ponto de vista “da degradação ambiental”.
Por outro lado, há muito terreno rústico que tem “uma perigosidade de incêndio elevada e muito elevada” e também “vai ser possível construir aí”, pelo que vale igualmente a pena “ser cuidadoso” com isso.
O docente do IGOT admitiu ter “a sensação de que se está a malbaratar um capital de consciência, de regras, de procedimentos que estavam interiorizadas” por toda a gente, nomeadamente pelos autarcas, e corre-se o risco de perder a noção de “que há regras e que não se pode, nem se deve construir em todo o lado”.
“A sensação que dá é que o Governo manda para o lixo o bebé com a água do banho” e perdem-se “décadas de trabalho por parte da administração central, por parte das administrações das autarquias, que é deitado fora”, com uma justificação que “é razoavelmente uma falácia”, salientou.
“Está por provar que a falta de habitação digna e acessível resulte da falta de terrenos aptos para construção ou disponíveis para construção. Eu penso que ninguém minimamente informado acerca do estado do território em Portugal, nomeadamente nas áreas metropolitanas, acredita nisso, não é disso que se trata”, considerou o investigador.
O que a alteração vai produzir, contrapôs, “é uma maior dispersão” e “a construção sem critério”, em “terrenos rústicos” da REN ou RAN.
O diploma foi publicado no Diário da República em 30 de dezembro, após promulgação pelo Presidente da República, apesar de considerar que a lei constitui “um entorse significativo [sic] em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território, a nível nacional e local”, mas BE, PCP, Livre e PAN requereram a apreciação parlamentar do decreto-lei que flexibiliza a lei dos solos.
Texto LUSA