Já andou a cavalo? Quem já experimentou sabe que pode ser difícil em termos anatómicos, mas será que afinal as ancas mentem?
A resposta, de acordo com arqueólogos da Universidade do Colorado em Boulder não é definitiva. Um novo estudo publicado na revista Science Advances, em que a equipa se baseou num elevado conjunto de provas — desde estudos médicos de cavaleiros modernos a registos de restos humanos ao longo de milhares de anos, revelou que a equitação pode, de facto, deixar uma marca nos esqueletos humanos, por exemplo, alterando subtilmente a forma da articulação da anca. Mas esse tipo de mudanças, por si só, não revelam definitivamente se as pessoas andaram ou não cavalo durante as suas vidas. Isto porque muitas outras actividades, — até ficar sentado durante longos períodos de tempo, podem transformar os ossos humanos.
“Na arqueologia, são muito poucos os casos em que podemos associar inequivocamente uma determinada atividade a alterações do esqueleto”, afirmou Lauren Hosek, autora principal do estudo e professora assistente no Departamento de Antropologia da Universidade de Boulder. Os resultados podem ter implicações para os investigadores que estudam as origens de quando os humanos domesticaram os cavalos — e também lançam dúvidas sobre uma antiga teoria na arqueologia conhecida como a hipótese Kurgan.
Os primeiros equestres
A pesquisa está no centro de um dos antigos debates em arqueologia, afirmou William Taylor, coautor do novo estudo e curador de arqueologia no Museu de História Natural da UC. O investigador explicou que a evidência mais antiga e incontestável de humanos a utilizar cavalos para transporte vem da região em torno dos Montes Urais da Rússia. Ali, os cientistas descobriram cavalos, freios e carruagens que remontam a cerca de 4000 anos.
Mas a hipótese Kurgan, que surgiu no início do século XX, defende que a relação próxima entre humanos e cavalos começou muito antes. Os seus defensores acreditam que, por volta do quarto milénio a.C., os antigos humanos que viviam perto do Mar Negro, chamados Yamnaya, começaram a galopar a cavalo pela Eurásia. Nesse processo, segundo a história, poderão ter espalhado uma versão primordial das línguas que mais tarde evoluiriam para o inglês, o francês e outras. Volker Heyd, arqueólogo da Universidade de Helsníquia, afirmou num estudo recente que estas modelaram a composição genética da europa.
“Grande parte da nossa compreensão dos mundos antigo e moderno depende da altura em que as pessoas começaram a utilizar os cavalos como meio de transporte”, afirma WilliamTaylor. “Durante décadas, houve a ideia de que a distribuição das línguas indo-europeias está, de alguma forma, relacionada com a domesticação do cavalo.”
Recentemente, os cientistas apontaram os restos humanos da cultura Yamnaya, que remontam a cerca de 3500 a.C., como uma peça chave de evidência que apoia a hipótese Kurgan. O grupo argumentou que estes povos antigos apresentavam indícios de desgaste nos seus esqueletos, provavelmente devido ao facto de andarem a cavalo.
Fonte: Science Advances
As ancas podem mentir
Mas, no novo estudo, Lauren Hosek e William Taylor argumentam que a história não é assim tão simples. Hosek tem passado muito tempo a examinar ossos humanos para aprender lições sobre o passado. Ela explicou que o esqueleto não é estático, mas pode deslocar-se e ao longo da vida podendo mudar de forma. Se puxarmos um músculo, por exemplo, pode surgir uma reação no local onde este se liga ao osso subjacente. Em alguns casos, o osso pode tornar-se mais poroso ou podem formar-se cristas elevadas.
No entanto, a leitura deste tipo de indícios pode ser, na melhor das hipóteses, pouco clara. A articulação da anca é um exemplo disso. Lauren Hosek observou que, quando se flecte as pernas durante prolongados períodos de tempo, incluindo durante longos passeios a cavalo, a bola e o encaixe da articulação da anca podem esfregar-se. Com o tempo, essa fricção pode fazer com que o encaixe redondo do osso da anca se torne mais alongado ou oval. Mas, segundo ela, outras actividades podem causar o mesmo tipo de alongamento.
As provas arqueológicas mostram que os seres humanos utilizavam gado, burros e até jumentos selvagens para o transporte em algumas zonas da Ásia ocidental, séculos antes de domesticarem os cavalos. Provavelmente, os povos antigos juntavam estes animais de carga para puxar carroças ou mesmo veículos mais pequenos de duas rodas que se assemelhavam a uma carruagem.
“Com o passar do tempo, esta pressão repetitiva e intensa desse tipo de empurrões numa posição flexionada poderia causar alterações no esqueleto”, explica Lauren Hosek. A investigadora observou alterações semelhantes, por exemplo, nos esqueletos de freiras católicas do século XX, que nunca andavam a cavalo, mas faziam longos passeios de carruagem pelo oeste americano.
Em última análise, ambos os investigadores afirmam que os restos mortais humanos, por si só, não podem ser utilizados para determinar a data em que as pessoas começaram a andar a cavalo — pelo menos não com a ciência atualmente disponível. “Os esqueletos humanos, por si só, não serão prova suficiente”, afirma Lauren Hosek. “Precisamos de juntar esses dados a provas provenientes da genética e da arqueologia, assim como analisar também os restos de cavalos”. Segundo William Taylor, o quadro apresentado não parece adequado para a hipótese Kurgan. “Pelo menos por enquanto, nenhuma dessas linhas de evidência sugere que o povo Yamnaya tinha cavalos domésticos”, conclui.