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Ninhos de abutre-barbudo guardaram tesouros esquecidos nas arribas da Península Ibérica

Durante séculos, ninhos de abutre-barbudo permaneceram escondidos em escarpas rochosas da Península Ibérica. Hoje, investigadores revelam que essas estruturas funcionaram como autênticos “museus naturais”, acumulando ossos de animais, restos de alimentação e até artefactos humanos que contam não apenas a história da espécie, mas também a das comunidades humanas que partilharam a montanha com ela.

Os abutres-barbudos normalmente carregam alimento e material para a construção do ninho até o local. (A) Um abutre-barbudo adulto com uma extremidade de carneiro antes de carregá-la para o ninho. (B) Um exemplo de um antigo ninho de abutre-barbudo examinado, ocupado por esta espécie ao longo de séculos e facilmente identificado pela extraordinária abundância de itens antropogénicos feitos de esparto e, tipicamente, fezes brancas solidificadas. Fotografias: (A) Antoni Margalida; (B) Sergio Couto.

Um estudo publicado em setembro na revista Ecology demonstra como os ninhos desta ave rara — desaparecida do sul de Espanha há mais de cem anos — preservaram milhares de vestígios biológicos e culturais. Entre eles, encontram-se ossadas de cabras, fragmentos de ovos, sandálias de esparto com mais de seis séculos e até um virote de besta.

Ninhos que atravessam séculos

O abutre-barbudo (Gypaetus barbatus) é único entre os abutres europeus: alimenta-se sobretudo de ossos, que transporta para o ninho e parte contra rochas para aceder à medula. Ao longo de gerações, estas aves reutilizaram os mesmos locais de nidificação em grutas e abrigos rochosos, criando depósitos com estratigrafias comparáveis às escavações arqueológicas.

Entre 2008 e 2014, uma equipa liderada por Antoni Margalida e Ana B. Marín-Arroyo investigou 12 ninhos históricos no sul de Espanha, onde a espécie se extinguiu entre há 70 e 130 anos. No total, recuperaram 2.483 vestígios, dos quais 2.117 eram ossos de animais — um testemunho direto da dieta da espécie. Mas 9% do material tinha origem humana: sandálias, cordas, fragmentos de couro pintado e cestos.

Uma coleção de materiais artesanais encontrados em antigos ninhos de abutre-barbudo. (A) Parte de um estilingue de capim-esparto. (B) Um detalhe de uma seta de besta e sua lança de madeira. (C) 
Agobía (Sierra Nevada, Granada), um calçado rústico feito de várias espécies de grama e galhos, C-14 datado em 674 ± 22 anos antes do presente (ETH-138982). As agobías normalmente duravam alguns dias de uso e eram continuamente reparadas e substituídas à mão pelo usuário. (D) Um fragmento de cestaria C-14 datado em 151 ± 22 anos antes do presente (ETH-138980). (E) Um pedaço de couro de ovelha C-14 datado em 651 ± 22 anos antes do presente (ETH-138981) com linhas vermelhas desenhadas e (F) um pedaço de tecido. As barras de escala estão em centímetros. Fotografias: Sergio Couto (A, B, D e F) e Lucía Agudo Pérez (C e E).

Relíquias inesperadas

As análises de radiocarbono (C-14) surpreenderam os investigadores. Uma sandália de esparto foi datada do século XIII, enquanto um fragmento de cestaria apontava para o final do século XVIII. O couro de ovelha pintado com linhas vermelhas revelou mais de seis séculos de antiguidade. Estes objetos, provavelmente recolhidos pelas aves como material de construção do ninho, transformaram-se em testemunhos etnográficos únicos.

“Os ninhos de abutre-barbudo funcionaram como cápsulas do tempo, conservando não apenas a ecologia da espécie mas também aspetos da vida humana das comunidades serranas”, explica Marín-Arroyo.

Ecologia e património cultural de mãos dadas

Além de ajudarem a compreender a dieta e o comportamento reprodutivo da espécie desde a Idade Média, os ninhos permitem reconstituir a fauna local ao longo dos séculos, revelando a presença e abundância de espécies selvagens e domésticas. Do ponto de vista arqueológico, os objetos preservados oferecem pistas sobre técnicas tradicionais de cestaria e calçado, semelhantes às encontradas em grutas pré-históricas da Península Ibérica.

Alguns itens descobertos em diferentes ninhos antigos de abutre-barbudo. (A) Cascos típicos de restos de membros de ungulados. (B) Ossos e dentes de diversos mamíferos e aves encontrados no mesmo ninho, alguns parcialmente digeridos. (C) Restos de cascas de ovos de abutre-barbudo, com a coloração alaranjada típica devido ao óxido de ferro aplicado pelas aves adultas às penas do peito. (D) Vários chifres de cabra encontrados no mesmo ninho antigo. (E) Excrementos sólidos típicos de abutre-barbudo acumulados em seus ninhos antigos. Fotografias: Sergio Couto.

Para os investigadores, os abutres-barbudos podem ser considerados bioindicadores excecionais. Os seus ninhos permitem estudar mudanças ambientais, a interação entre fauna e seres humanos e até problemas mais recentes, como a contaminação por pesticidas que afetou a reprodução das aves.

Uma oportunidade para o futuro

Atualmente, o abutre-barbudo é a ave de rapina mais ameaçada da Europa, com apenas 309 casais reprodutores — quase metade concentrada nos Pirenéus. A recuperação da espécie no continente poderá beneficiar destes dados históricos, que ajudam a identificar habitats adequados e locais de reintrodução.

“Estes ninhos são verdadeiros arquivos naturais que nos permitem olhar para trás e projetar o futuro da conservação”, conclui Margalida.

O estudo sugere que, no cruzamento entre ecologia e arqueologia, o abutre-barbudo é muito mais do que uma ave rara: é também um guardião de histórias humanas e naturais que sobreviveram, ossos e fibras entrelaçados, nas paredes das montanhas.

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