Novas tecnologias permitem o uso de DNA degradado de espécimes preservados por décadas, contribuindo para o avanço do conhecimento científico e a conservação da biodiversidade
Em 1831, Charles Darwin embarcou numa viagem de cinco anos à América do Sul a bordo do HMS Beagle, que efetuava levantamentos hidrográficos. Durante a expedição, Darwin explorou regiões remotas do continente, recolhendo plantas, animais e fósseis e registando observações detalhadas. Estes materiais foram fundamentais para o desenvolvimento das suas ideias sobre a evolução por seleção natural, que constituem um pilar do desenvolvimento científico moderno. Atualmente, a coleção que Darwin reuniu na sua mais famosa viagem está ao cuidado do Museu de História Natural de Londres, onde se encontra organizada e preservada há dois séculos.
Os museus de história natural têm desempenhado um papel fundamental na preservação da memória científica. No entanto, muitas das colecções científicas destes museus têm permanecido subutilizadas nas últimas décadas. O aparecimento de técnicas de sequenciação que requerem tecidos recentes e ADN intacto tornou as colecções históricas irrelevantes. Mas este cenário está a mudar, impulsionado sobretudo pela museómica.
“A museómica pode ser definida como a aplicação de técnicas de biologia molecular, genómica e bioinformática ao estudo de espécimes preservados em colecções de museus, envolvendo a extração, sequenciação e análise de ADN degradado de amostras históricas [hDNA] de museus, permitindo investigações sobre evolução, biodiversidade, genética de populações, filogenia, taxonomia e conservação”, disse Taran Grant, que é professor titular do Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências e curador associado de anfíbios do Museu de Zoologia, ambos da Universidade de São Paulo (USP).
Grant é um dos convidados do Seminário França-Brasil de Museologia, que começou no dia 12 de junho, no Museu do Homem, em Paris. O seminário foi organizado pelo Museu Nacional de História Natural (MNHN) da França em parceria com a FAPESP e a Universidade de São Paulo (USP). Ele faz parte da programação da FAPESP Week France 2025.
Grant falou sobre como a museómica está a revolucionar a forma como as coleções científicas são usadas e valorizadas. Ao permitir a extração e análise de DNA de espécimes históricos, abre possibilidades para pesquisas em áreas como evolução, extinção, adaptação, mudanças ambientais e conservação da biodiversidade. “Com a museómica, podemos aceder à informação genética de materiais recolhidos há mais de cem anos”, afirmou Grant.
O cientista conta que começou a extrair e sequenciar ADN de amostras antigas de museus nos anos 90, mas enfrentou grandes limitações tecnológicas no seu trabalho. Na altura, era utilizado o método 0, que exigia fragmentos de ADN longos e bem conservados. Isto era difícil porque o material genético dos espécimes de museu está frequentemente muito fragmentado e degradado.
“A degradação do ADN está ligada à idade da amostra e às condições do museu. No álcool utilizado para conservar os espécimes, o problema é o teor de água. O pior inimigo do ADN é a água, que corrompe o material genético. Em museus localizados em regiões mais quentes, com altas temperaturas e sem ar-condicionado, a evaporação é maior, por isso o álcool deve ser trocado com mais frequência”, explicou Grant à Agência FAPESP.
Os avanços tecnológicos, principalmente com a plataforma Illumina e outras tecnologias de sequenciamento de nova geração, tornaram possível trabalhar com DNA fragmentado ou degradado, favorecendo o uso de material de museu. No entanto, surgiu um novo desafio: a quantidade de DNA endógeno – ou seja, DNA autêntico do organismo – em amostras de tecidos é extremamente pequena. Isto torna as amostras altamente susceptíveis à contaminação por ADN ambiental ou por manipulação. Por isso, ambientes controlados, como laboratórios com salas limpas e condições estéreis, são necessários para a extração e análise desse material para evitar contaminação e perda da informação genética original.
Com apoio da FAPESP, Grant e os seus colegas montaram uma sala limpa no Departamento de Zoologia da USP. “Até onde sei, é a única instalação desse tipo na América Latina dedicada a estudos de taxonomia. Sem o apoio da FAPESP, este avanço nas nossas pesquisas não teria sido possível. Esse equipamento permite-nos desenvolver a museómica e trazer os museus de história natural de volta ao epicentro dos estudos da biodiversidade”, disse.
Colecções de ADN
“Durante dois séculos, os museus foram o local onde se realizava a investigação sobre a biodiversidade. Agora, a museómica permite-nos estudar colecções inteiras que anteriormente não tinham valor genético. Estima-se que pelo menos 3 mil milhões de espécimes estejam preservados em museus de todo o mundo e agora podemos aceder ao ADN de muitos deles”, disse Grant.
Os resultados já estão a começar a aparecer. Por exemplo, a edição atual do Bulletin of the American Museum of Natural History apresenta um artigo de 78 páginas de Grant, Mariana Lyra, Miguel Trefaut Rodrigues, Vanessa Kruth Verdade e investigadores da Alemanha e do Reino Unido.
No artigo, os autores descrevem como utilizaram a museómica para responder a uma questão com décadas sobre a classificação dos anfíbios da Mata Atlântica. Ao sequenciar porções de genomas extraídos de pequenas quantidades de ADN antigo preservado em espécimes de museu, os cientistas reclassificaram as rãs-foguete em 12 espécies, três das quais estão extintas, e propuseram um novo género. Anteriormente, pensava-se que se tratava de uma única espécie.
“Sabíamos, a partir de dados acústicos e moleculares, que havia mais espécies, mas não podíamos compará-las com espécimes descritos no passado porque não havia forma de lhes extrair ADN. Agora isso é possível”, disse Grant.
O campo da taxonomia, que anteriormente estava paralisado pela falta de dados genéticos fiáveis de espécimes preservados, está a avançar novamente. Com isso, a capacidade de formular políticas de conservação eficazes também está a avançar.
“Sem saber quantas e quais espécies existem, não há como proteger o que está em risco. O material histórico é extremamente importante para resolver a taxonomia, e sem taxonomia não há conservação. Porque o paradigma da conservação são as espécies e não as populações ou os indivíduos. Se não soubermos quantas e quais espécies existem, não podemos formular políticas e estratégias de conservação”, destacou o professor da USP.
“Com os avanços da tecnologia, conseguimos ter uma visão muito mais precisa da diversidade ao longo do tempo, o que informa não só as ações de conservação, mas também as políticas relacionadas à biodiversidade.”
Segundo Grant, o trabalho publicado no Bulletin of the American Museum of Natural History começou em 2018. Envolveu a colaboração com coleções no Brasil e no exterior, em especial com a Universidade de Potsdam, na Alemanha.
“O primeiro passo foi ganhar experiência com laboratórios pioneiros. A minha principal colaboradora em hDNA é a Mariana Lyra, que ajudou a montar nosso laboratório de sala limpa. Hoje ela trabalha na Universidade de Nova York, em Abu Dhabi, mas mantém fortes laços com o Brasil. O trabalho dela em Potsdam foi fundamental para garantir a qualidade e a credibilidade do nosso trabalho”, disse.
Grant disse que, além do avanço científico, a museómica representa uma revalorização simbólica e prática dos museus de história natural. “Durante muito tempo, foram vistos como espaços de exposição ou armazéns. Mas o verdadeiro valor dos museus reside nas suas colecções, que são invisíveis para o público, mas que têm agora um novo papel científico.”
A museologia não só reacende o papel dos museus de história natural, como também coloca novos desafios em termos de preservação, infra-estruturas e financiamento. “Temos de pensar nos espécimes como fontes de ADN e não apenas como espécimes para estudo morfológico. A conservação do material genético deve ser uma prioridade desde o início”, afirmou.
“Isto requer infra-estruturas adequadas, como o controlo climático, para evitar a degradação do material genético. Também precisamos de começar a extrair e a preservar amostras de tecido dos espécimes que já se encontram nas nossas colecções. Um exemplar com dez anos terá 110 anos daqui a um século. Se preservarmos corretamente as amostras, podemos travar o processo de degradação do ADN. E a museômica está apenas começando”, disse Grant.


